Com uma bolsa de lona nos ombros, Tulio Morais, um belo-horizontino de 29 anos, chegava para mais um dia de trabalho na Opéra Garnier. Seus tênis impecavelmente brancos chamavam a atenção – andar de metrô em Paris e manter os sapatos limpos é uma arte que poucos dominam. Rapidamente, ele subiu até o quarto andar, onde fica o Atelier Flou, a oficina de figurinos das étoiles – as estrelas femininas da companhia – e das primeiras-bailarinas.
O ambiente é espaçoso e largas mesas dispostas no centro servem de estação de trabalho para as costureiras. Ao longo das paredes, alinham-se as máquinas de costura. Era pouco depois de dez da manhã, e as costureiras discutiam a origem do termo cocotte. “É quando alguém toma um banho de perfume e o cheiro fica… forte”, disse uma delas, risonha. Outra observou, compenetrada, enquanto alinhava um pedaço de renda: “Cocotte já foi sinônimo de prostituta de luxo.” Com uma tesourinha de costura pendurada em volta do pescoço, Morais tirou de um gavetão um rolo de tule preto e entrou na conversa, conjugando o verbo que designa “cheirar mal” em francês: “je cocotte, tu cocottes…” Todos riram.
No Atelier Flou, o termo cocotte indica uma técnica exclusiva para recortar em um padrão de semicírculos os tecidos com os quais serão confeccionadas as múltiplas camadas de saias (entre onze e treze) que compõem o tutu, a famosa peça utilizada pelas bailarinas. “Se há outras pessoas que fazem cocottes nas saias, elas aprenderam aqui. Copiaram e levaram para os seus ateliês”, disse Morais, enquanto mostrava o molde que improvisou em plástico branco meio rígido.
A primeira aparição de um tutu ocorreu em 1832 nos palcos do antigo teatro na Rua Le Peletier, a alguns quarteirões de onde fica atualmente a Opéra Garnier, inaugurada em 1875. Marie Taglioni protagonizou o balé La Sylphide usando uma saia com camadas de musseline que deixava à mostra os tornozelos, um feito escandaloso para a época. Ninguém sabe ao certo de onde se originou o termo, mas supõe-se que foi fixado na linguagem corrente a partir de 1881. Talvez proceda da palavra “tule”, um dos tecidos mais usados na confecção das saias, ou talvez venha da gíria infantil tutu (bumbum).
As saias precisam ser engomadas a cada três ou quatro apresentações. A alguns passos do ateliê fica uma máquina industrial de engomar que, graças a uma base líquida de amido de milho, devolve às peças o aspecto original. “As bailarinas são élevées”, explicou Morais, imitando o gesto com que elas são erguidas pelos bailarinos. “Também sentam, deitam e, claro, dançam. O figurino sofre com isso.”
Costureiro e designer de moda, Morais ingressou na Opéra Garnier graças a um programa que seleciona jovens profissionais entre 18 e 29 anos – tais como músicos, marceneiros, cantores, ferreiros, coreógrafos, peruqueiros e maquiadores – para aprofundarem seus conhecimentos e habilidades durante oito meses. Eles também trabalham na produção dos próximos espetáculos da casa de ópera. Morais foi o único brasileiro escolhido para o estágio da temporada 2018-19.
Faz quatro anos que Tulio Morais vive em Paris, para onde veio a fim de fazer uma especialização na renomada Escola da Câmara Sindical de Costura Parisiense, após ter cursado design de moda em Belo Horizonte. Desde que chegou à capital francesa, não parou de trabalhar com a criação de roupas – aspira tornar-se designer de alta-costura. Como o estágio na Opéra Garnier permite que o profissional desenvolva um projeto pessoal, ele optou por fazer um traje completo de balé que inclui um tutu.
O tutu de Morais, além de onze camadas de tule preto, tem três camadas de tecido de cor de cobre (“para decoração”, ele explica) e um disco firme, plissado, em volta da cintura, da mesma cor – é o chamado “tutu panqueca”.
O traje é parte de uma coleção de vinte peças que ele realiza como projeto artístico para compor seu portfólio. O conjunto faz referência à tragédia de Brumadinho. “O bustiê será bordado com galhos secos pintados de cobre e cristais. Busquei falar do rompimento da barragem, daquela onda de lama que devastou tudo que tinha pela frente: casas, famílias, paisagens, história, humanos, animais.”
No caderno de trabalho onde ele coleciona imagens para inspiração e amostras de tecidos, há fotos de mineradores cobertos de lama e pedaços de pano de diversos tons terrosos. “A tragédia de Brumadinho me afetou como ser humano que sou: alguém que tem esperança nos seres humanos, que acredita na capacidade deles de fazerem o bem, mas se decepciona quando se depara com atitudes que causam tanto mal para tanta gente”, afirmou.
No ateliê, o jovem brasileiro trabalhava de frente para Martine Chardey. Ela começou como artesã na Opéra Garnier aos 19 anos. “Eu era curiosa e estava bastante motivada, assim como o Tulio. Queria saber como funcionava essa peça. Não há escolas. Aqui é o único lugar para aprender”, disse ela, que, aos 48 anos, perdeu a conta de quantos tutus já confeccionou. Sobre uma mesa, Chardey montava um vestido de veludo roxo intenso para o balé O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky.
Seguindo a tradição do ensino oral no ateliê, ela aconselhava Morais, enquanto o observava afixar, com agulhas, o tule recortado à estrutura interna do tutu, antes de costurá-lo na máquina. “Tulio está indo bem”, ela avaliou, com ares de professora que não quer entregar a nota antes da hora.
O tecido usado por Morais não era tão nobre como o do modelo branquíssimo de O Lago dos Cisnes, que pendia acima da sua mesa de trabalho e lhe servia de inspiração. “Comprei o meu tule no Marché Saint Pierre”, ele contou, referindo-se à região de comércio popular em Paris. Além disso, diferentemente das costureiras do ateliê, Morais podia levar o seu tutu para casa. “Pensando bem, eu deveria ter feito o molde do meu tamanho”, ele disse, rindo, enquanto esticava mais 10 metros de tecido.